sexta-feira, 8 de julho de 2011

Liturgia da Palavra: O semeador saiu para semear

Apresentamos o comentário à Liturgia da Palavra do 15º domingo do Tempo Comum – Is 55, 10 – 11; Rm 8, 18 – 23; Mt 13, 1 -23 –, redigido por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração (Mogi das Cruzes - São Paulo). Doutor em liturgia pelo Pontificio Ateneo Santo Anselmo (Roma), Dom Emanuele, monge beneditino camaldolense, assina os comentários à liturgia dominical, às quintas-feiras, na edição em língua portuguesa da Agência ZENIT.

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DOMINGO XV TEMPO COMUM

O semeador saiu para semear


Leituras: Is 55, 10 – 11; Rm 8, 18 – 23; Mt 13, 1-23

“Jesus disse-lhes muitas coisas em parábolas: O semeador saiu para semear...” (Mt 13, 3).

A Liturgia da Palavra dos próximos três domingos do Tempo Comum (15º, 16º e 17º) nos coloca na escuta do próprio Jesus, enquanto faz ressoar também para nós o anúncio da Boa Nova, através de um conjunto de sete parábolas. Na sucessão dessas parábolas, distribuídas ao longo do capítulo 13 do seu evangelho, Mateus nos oferece o âmago da pregação de Jesus sobre o reino de Deus, que ele inaugura com seus gestos e suas palavras.

Ao nos propor estas parábolas do reino de Deus na Liturgia do Tempo Comum, a Igreja nos convida a tomar consciência que nós também estamos vivendo o tempo da nossa vida, como tempo de graça (kairós), segundo a expressão do Novo Testamento, para um encontro vital com Jesus e sua Palavra, com seu apelo para nos abrirmos à graça e às exigências sempre novas da conversão ao Senhor.

“Arrependei-vos, mudai a maneira de viver, porque está próximo o reino dos Céus” (Mt 4,17), proclama Jesus desde o início da sua pregação. Na linguagem bíblica do AT herdada por Mateus, o termo “Céus” é sinônimo de “Deus”, cujo nome não pode ser pronunciado por respeito à sua transcendência e santidade.

Lucas, para salientar que este processo de renovação promovido por Deus é uma realidade já atuante na pessoa de Jesus, e que chama cada um de nós a um compromisso pessoal, traz a resposta mais pontual de Jesus aos fariseus, sobre o tempo da chegada do reino de Deus: “O reino de Deus está no meio de vós” (Lc 17,21), ou, segundo outra tradução: “...está dentro de vós”.

Considerando que a Liturgia da Palavra dos próximos domingos nos apresentará todo o capítulo 13 de Mateus, com o anúncio do reino de Deus por parte de Jesus através de sete parábolas, convém ilustrar brevemente o sentido da linguagem simbólica dessas parábolas.

Desde o momento em que, por livre escolha de amor e por divina condescendência, “O Verbo de Deus se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14), ele assumiu como “sua casa”, seu modo de ser e de atuar, a fraqueza da condição humana, as ambiguidades da história e até mesmo o pecado (cf. 2 Cor 5,21; Gl 3,13).

Desde então, “o reino de Deus” está atuando em maneira misteriosa, escondida na fraqueza humana de Jesus e nossa; opera com a potência do seu Espírito dentro esta mesma complicada realidade, para renová-la. O Espírito atua para transformar esta realidade e abri-la novamente à vida, à comunhão com Deus e recíproca entre as pessoas, e à alegria, segundo o projeto originário de Deus expresso na criação. Jesus, na sua própria pessoa é a primeira “parábola” através da qual, o Pai se revela e se comunica, doando-nos a si mesmo.

Em Jesus, o Pai imprime à nossa vida uma orientação nova e decisiva. Diz-nos que a nossa história e, portanto, a nossa vida pessoal, é o lugar em que se expressa a misericórdia de Deus que tudo reconcilia e renova. Essa é a “Boa Notícia”, o “Evangelho” no seu sentido literal, que traz alegria e esperança, para todos, sobretudo para os pequenos e os pecadores.

Para ilustrar, de modo mais acessível, às pessoas do seu tempo e de todo tempo, este misterioso dinamismo da ação de Deus, que supera a capacidade humana de entendê-lo e reconhecê-lo, Jesus usa a linguagem simbólica das “parábolas”, linguagem simples, sugestiva e rica ao mesmo tempo. Simples, pois usa feitos e imagens da vida cotidiana do povo. Sugestiva, enquanto através dela deixa entrever e vislumbrar a realidade profunda da ação de Deus, que nos transcende, mas que ao mesmo tempo toca a nossa existência mais íntima. Rica e profunda, pois a Palavra de Jesus, não somente informa sobre o Pai e sobre suas relações para conosco, mas nos comunica sua própria vida, e nos transforma nela, nos impelindo a nos comprometermos com ela.

Assim a linguagem simbólica das parábolas, conexa com a experiência cotidiana, se faz alusiva ao mistério da ação de Deus em Jesus e na história, e solicita a resposta dos ouvintes. Muitas vezes Jesus introduz uma parábola com esta expressão: “O reino de Deus é semelhante a....” (cf. Mt 13, 24;31;33). Desta maneira Jesus suscita o interesse dos ouvintes, impelindo-os a procurar com maior profundidade a mensagem que ele lhes propõe. Aos poucos, cada um descobre que ao final não está somente ouvindo a mensagem de Jesus, como quem escuta a história de outras pessoas, mas como alguém chamado em primeira pessoa a se reconhecer como protagonista da parábola: a palavra de Jesus está sendo oferecida a ele para uma conversão ao Senhor, para uma vida nova. “Quem tem ouvidos, ouça!” (Mt 13, 9).

Para fazer esta passagem do sentido imediato das palavras de Jesus ao conteúdo profundo e vital da parábola se faz mister abrir-se com simplicidade de coração e confiança ao Senhor. Se falta esta atitude, a parábola, como aconteceu com a pessoa humana de Jesus, acaba velando, escondendo o que em verdade queria desvendar e revelar.

Depois da cura do homem possuído pelo demônio, “As multidões ficaram admiradas e diziam: Nunca se viu coisa igual em Israel. Os fariseus porém, diziam: É pelo chefe dos demônios que ele expulsa os demônios” (Mt 9, 33-34).

Esta passagem de inteligência e de acolhida pressupõe ao mesmo tempo o dom da inteligência, que vem do Espírito de Deus, e a simplicidade do coração e da fé diante dele. “Por que falas ao povo em parábolas?”, perguntam os discípulos a Jesus. Sua resposta nos deixa com a respiração suspensa: “Porque a vós foi dado o conhecimento dos mistérios do reino dos céus, mas a eles não é dado.... É por isso que eu lhes falo em parábolas: porque olhando, eles não veem e, ouvindo, eles não escutam nem compreendem.... porque o coração deste povo se tornou insensível” (Mt 13, 15).

Os discípulos pertencem aos que, pelo seguimento sincero de Jesus, tem o coração simples e o olhar luminoso da fé, iluminado pelo Pai: “Felizes sois vós, porque vossos olhos veem e vossos ouvidos ouvem”, a realidade misteriosa de Deus, que os profetas e os justos do Antigo Testamento desejaram e não conseguiram ouvir e ver (Mt 13, 16-17- cf. Mt 16, 16-18: confissão de fé inspirada a Pedro pelo Pai).

Jesus tinha já sublinhado que esta inteligência interior do seu mistério por parte dos discípulos era dom do Pai e fruto da simplicidade da fé deles: “Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, porque assim foi de teu agrado” (Mt 11, 25-26).

As coisas que pertencem a Deus podem ser entendidas somente graças ao Espírito de Deus, como sublinha o apóstolo: “Quem pois, dentre os homens conhece o que é do homem, senão o espírito do homem que nele está? Da mesma forma, o que está em Deus, ninguém o conhece senão o Espírito de Deus. Quanto a nós não recebemos o espírito do mundo mas o Espírito que vem de Deus, a fim de que conheçamos os dons da graça de Deus” (1 Cor 2, 11-12).

A afinidade interior, criada pelo Espírito Santo, nos põe em sintonia com a ação e o estilo de Deus, nos introduz na alma do evangelho, nos revela e faz experimentar a fraqueza de Deus e a cruz, como manifestação da sua sabedoria e energia vital e transformadora. Sem esta sintonia no Espírito, tudo se torna mudo e escandaloso: o escândalo da cruz! Pelo contrário, quando subsiste a sintonia com o Espírito, a cruz de Jesus se torna como que “a parábola” por excelência, que nos revela o coração do Pai e do Filho, e o nosso destino de filhos e filhas amados por ele no Espírito Santo.

Este é o “caminho espiritual” que todo discípulo autêntico de Jesus é chamado a cumprir em todo tempo, escutando e acolhendo de todo coração sua palavra e seu impulso interior. As numerosas parábolas com que Jesus acompanha sua pregação e seus gestos nos deixam vislumbrar e saborear a infinita ternura, perseverança e fantasia criativa, com que o Pai se doa e nos chama a entrar em comunhão sempre mais profunda com ele.

“O semeador saiu para semear. Enquanto semeava, algumas sementes caíram à beira do caminho, outras caíram em terreno pedregoso.... outras... outras... Quem tem ouvido ouça!” (Mt 13, 3-9).

Com a parábola do semeador que espalha com generosidade as sementes em toda direção e condições do terreno, Jesus destaca a iniciativa de Deus, o dinamismo intrínseco da palavra proclamada, as dificuldades que encontra em seu desenvolvimento, e, além de toda dificuldade, o bom êxito final. Este último aspecto é ainda mais reforçado pela proclamação paralela da palavra do profeta Isaias: “Assim como a chuva e a neve descem do céu e para lá não voltam mais, mas vem irrigar e fecundar a terra.... assim a minha palavra que sair de minha boca...” (Is 55, 10-11).

A iniciativa gratuita de Deus e a fecundidade da palavra anunciada constituem o centro da parábola, na sua primeira parte (13, 3-9). A maneira de atuar do semeador, que vai contra a lógica razoável do aproveitamento de qualquer agronegócio, destaca o surpreendente estilo de Deus: “Nisto se manifestou o amor de Deus por nós... Nisto consiste o amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas foi ele quem nos amou e enviou-nos seu Filho” (1 Jo 4, 9-10). Esta semente generosamente entregue à terra, sem distinção no cálculo da resposta possível, é o próprio Filho, a Palavra vivente e vivificadora do Pai, que somos chamados a acolher, e deixar que ela nos faça partícipes de sua mesma fecundidade. “A palavra de Deus, cresce com aquele que a lê”- “Verbum Dei cum legente crescit”, afirmava o grande papa e doutor da Igreja São Gregório Magno, fazendo-se intérprete da tradição comum teológica e espiritual dos Padres da Igreja.

O discípulo que a acolhe com fé se torna, por sua vez, Palavra vivente de Deus. É a partir desta convicção de fé que o Concílio Vaticano II, com o intuito de renová-la nas suas profundas raízes divinas, decidiu colocar novamente a toda a Igreja na atitude de “ouvir e escutar com profunda fé a Palavra de Deus e de proclamá-la com confiança”. (Verbum Domini religiose audiens....” Const. Conciliar Dei Verbum, n. 1).

Assim como faziam os Padres da Igreja, o Papa Bento XVI nos fala novamente da “sacramentalidade da Palavra”, indicando sua origem no mistério da encarnação e sua eficácia salvífica, em analogia com a presença real de Cristo nas espécies do pão e do vinho consagrado (Verbum Domini, n. 56). A celebração da palavra de Deus na liturgia, feita com cuidado e devoção, e a sua meditação cotidiana na Lectio Divina, recomendadas com tanta solicitude pastoral pelo Papa, constituem extraordinários eventos salvíficos, a serem vivenciados com adequada preparação e intensa fé, que realizam em plenitude o anúncio de Jesus, e nos tornam “parábola vivente” do semeador.

De maneira surpreendente, de fato, a segunda parte da parábola do semeador (Mt 13, 23) apresenta uma nova interpretação, segundo a qual, a semente semeada não é mais a palavra anunciada, mas a pessoa, que a recebe com suas variadas atitudes. Algumas destas favorecem o desenvolvimento fecundo da palavra ouvida, outras o impedem: “Ouvi, portanto, a parábola do semeador: todo aquele que ouve a palavra do reino e não a compreende.... este é o que foi semeado à beira do caminho..... A semente que caiu em boa terra é aquele que ouve a palavra e a compreende. Esse produz fruto. Um dá cem, outro sessenta e outro trinta” (Mt 13, 18-19; 23).

A criação inteira, juntamente conosco, “está esperando ansiosamente o momento de se revelarem os filhos de Deus... gemendo no tempo presente como que em dores do parto” (Rm 8, 18-23). O projeto de Deus e o dinamismo da palavra que está fecundando potencialmente a história, abrangem num único processo cada pessoa e toda a criação, como no início (cf. Gen 1). Nós, os escolhidos e chamados por graça, os porta-vozes de agradecimento e de louvor diante de Deus.

“Quem tem ouvidos ouça!”

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